Quem circula pelas imediações da Ladeira do Hospital no bairro de Nazaré, em Salvador, fica impressionado com os belíssimos grafites das 14 Obras de Misericórdia, que estão embelezando o muro lateral externo do Hospital Santa Izabel. O projeto de autoria da museóloga Jane Palma, que está há uma década a frente do acervo patrimonial quadricentenário da Santa Casa e coordena o Museu da Misericórdia, contabiliza pela segunda vez o sucesso de sua iniciativa. Durante a conversa com A Arte na Rua, em seu gabinete, no edifício-sede da instituição, ela falou sobre a pintura do painel “As 14 Obras de Misericórdia”, sendo sete Espirituais e sete Corporais, que foram reproduzidas pelos grafiteiros baianos Júlio Costa, Bigod, Pinel, Baga, Drico, Boob, Prisk, Mônica. Além disso, Palma ainda revelou outros projetos ligados ao museu. Leia na íntegra a entrevista. (Direitos reservados. Denuncie abusos).
Qual o papel principal da Santa Casa da Misericórdia?
É uma pergunta bem interessante em função de que nosso papel não é de agora. A Santa Casa da Misericórdia da Bahia existe há 462 anos e, ao longo desses anos, ela sempre teve um papel importante na formação da sociedade baiana, na compreensão da ação de todo esse status social dessa cidade, que é a sociedade e, também, da parte artística e arquitetônica, levando-se em consideração que a Santa Casa tem um prédio renascentista que é o museu, um prédio neogótico que é o da Capela do Campo Santo e um prédio clássico que é o do Hospital Santa Izabel.
São três diferentes estilos arquitetônicos?
Dentro da cidade de Salvador. Por exemplo, se alguém quiser fazer um estudo sobre a evolução arquitetônica na cidade, pode fazer através dos prédios da Santa Casa da Misericórdia. Por essa razão eu digo que é uma instituição de fundamental importância para o crescimento e evolução da nossa cidade e do nosso estado.
A senhora é funcionária de carreira?
Não. A Santa Casa não é ligada a nenhuma instituição e nem do governo. É uma ONG. E a primeira do Brasil foram as Santas Casas.
Quantas unidades são ligadas a Santa Casa?
São oito. Cemitério, hospital, maternidade, creches, cerimonial, escola de Enfermagem, escola de Formação Profissional Avançar e o museu.
O que levou a instituição a grafitar o muro externo do hospital?
Por três motivos: Primeiro, uma visibilidade para as ações da instituição Santa Casa; segundo, uma ação social, porque a partir do momento que se dá oportunidade a um artista de rua, possibilita-lhe visibilidade, já que o muro está na região, e que muitos transeuntes circulam por ali vejam o trabalho deles. Com isso, a instituição promove uma ação social, chamando os grafiteiros e dando oportunidade a eles de mostrarem suas capacidades artísticas e exporem a sua arte e; terceiro, cuidar do patrimônio arquitetônico da Santa Casa. Por quê? Se você deixa aquele muro todo branco ou deixa ele só no cimento, certamente está fadada a pichação e a sujeira. Ninguém vai colocar os pés no muro, por causa do grafite. Mas, se não tivesse grafitado, fatalmente as pessoas parariam e apoiariam os pés sujando o muro.
Foi de sua autoria o projeto da primeira intervenção no mesmo local?
Sim. Foi em 2005. Optei por mostrar como vitrine no muro do hospital, os prédios da instituição. Tinha a pintura do Museu da Misericórdia, século XVII; o Hospital de Santa Izabel, século XIX, a estátua do Conde Pereira Marinho, fundador do hospital e; a parte da jardinagem interna.
E no projeto atual?
Desta vez, escolhi as 14 obras da Misericórdia. Que são na verdade os 14 compromissos que a instituição Santa Casa tem desde quando foi fundada em 1498, em Portugal. Naquela época, quem fundou a Santa Casa em Portugal foi uma mulher, a Rainha Leonor muito católica. Ela se pautou na Bíblia para ver nos Mandamentos, o Capítulo 25 de Mateus, que diz: o que você deve fazer com o outro é o que você gostaria que fizesse com você. Então, está lá: Dá o de comer a quem tem fome, dá de beber a quem tem sede, vestir os nus. Então, são 14 compromissos de misericórdia, 14 ações que pautam o regimento dessa instituição a mais de 400 anos. Por essa razão fiz a escolha das 14 Obras de Misericórdia, para serem grafitadas no muro do hospital.
E quais são esses compromissos?
Os espirituais: Ensinar aos simples, Dar bons conselhos, Castigar com caridade aos que erram, Consolar os tristes, Sofrer as injúrias com paciência, Perdoar a quem errou e Rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos; os coporais: Curar os enfermos, Remir os cativos e visitar os presos, Vestir os nus, Dar de comer aos famintos, Dar de beber aos sedentos, Dar pousada aos peregrinos e Sepultar os mortos.
Quantas pessoas foram envolvidas nesse projeto?
Participaram oito grafiteiros. Cada um ficou com duas Obras de Misericórdia. São 14, mas nós colocamos 16, ficando de um lado a Nossa Senhora da Misericórdia e do outro a Nossa Senhora da Piedade. Além da pintura desses módulos, no início do muro, um dos artistas pintou na cor azul e branco o formato dos azulejos do século XVII, existentes no interior do museu, a logomarca e o nome do hospital.
Qual a relação do grafite com a museologia?
Se levarmos em consideração que nós museólogos somos os decodificadores de uma cultura, o que estou querendo dizer com isso: o profissional museólogo não é aquele que conta história, não é aquele que simplesmente monta uma exposição. Ele decodifica um objeto e codifica uma cultura para ela ser bem mais lida. Por exemplo, posso pegar um tênis de 2011 e a depender da decodificação que der a esse tênis, ele pode ir para o museu. Posso até comprar um na loja e levá-lo para fazer a decodificação em torno dos materiais e da evolução na confecção de um tênis. Nesse caso estou dando um cunho industrial ou econômico. Mas se posso pegar esse tênis, levá-lo para uma vitrine ou uma exposição e dar uma decodificação, fazendo uma referência desde a sandália de São Francisco até o tênis, isso vai ser um tema de decodificação religiosa. Então, para a museologia, a grafitagem é uma expressão de arte moderna, e que nós também podemos usá-la em vários segmentos, como nos muros.
Como foi o critério para escolha dos grafiteiros?
Através do contato com o senhor Doti, do Projeto Salvador Grafita, que me indicou os oito grafiteiros.
Como se deu o desenvolvimento da temática?
Fiz uma reunião com os grafiteiros, definindo que cada um ficaria com duas obras. Durante a visita ao espaço do museu, mostrei-lhe a coleção das 14 obras em formato tridimensional, feitas em 2005, por artistas baianos, como Bel Borba, Carmem Penido, Cristian Cravo, Luiza Olivetto, Calazans Neto, Caetano Dias, Juarez Paraíso, Juracy Dórea, Cesar Romero, dentre outros. A visão que eles tiveram das abras de arte foi muito importante para a definição de cada um deles, que foram falando entre si “acho melhor no meu suporte fazer esse…”
O grupo apresentou esboços para sua aprovação?
Sim. Na reunião seguinte apresentaram um esboço do primeiro ensaio. Discutimos alguns pontos. Apesar da criação da arte ser deles, estávamos tratando do muro de um hospital, de uma instituição secular. Mesmo assim, foram pouquíssimas as minhas intervenções, tendo em vista que foram muitos bons na concepção, logo de cara. São rapazes jovens e tecnicamente muitos bons. São pinturas de se emocionar de tão boas que são.
A pintura do painel contou com apoio de alguma instituição?
Não. Só com a Santa Casa.
Existem outros projetos de intervenções semelhantes, como por exemplo, modificar o visual do muro do Cemitério do Campo Santo? Em Serrinha, interior baiano, com anuência da prefeitura e apoio da população, um grupo de artistas da cidade transformou o espaço com belos grafites e mensagens de paz.
No momento não. Só esse mesmo. No caso do Cemitério do Campo Santo, para criar e quebrar um pouco o impacto do espaço, que na verdade é uma mudança de comportamento e leitura do espaço cemitério, vem de uma pesquisa de quatro anos e, em 2007, inauguramos no Campo Santo o circuito cultural. Existe no local um circuito de cultura e arte desde 2007. É bom ressaltar que não é muito da cultura da nossa cidade, mas graças a Deus está sendo muito bem visitado por turistas ingleses e espanhóis que vem a Salvador, além de estudantes de faculdades que tomam conhecimento do circuito cultural.
Qual é a proposta do circuito cemiterial?
Eu busquei fazer uma coisa diferencial do que já existe na França e na Argentina, em termos de visitação a cemitérios. Nesses dois países, as pessoas vão aos cemitérios para conhecer personalidades que estão enterradas lá. Em Salvador, o circuito cultural não se pautou em nenhuma personalidade, médico ou político, mas essencialmente em três abordagens: Histórica, porque existe o cemitério há décadas? Quanto tempo? Quando começou? Artística. Os estilos de arte que tem encimando os mausoléus e o que é que essa simbologia da arte diz para nós e abordagem social. Também existe um trabalho informal muito grande no entorno do cemitério. Uma indústria muito grande e forte da morte. Que indústria é essa? A indústria de quem vende o caixão, de quem vende as flores, de quem vende até o veuzinho que é colocado nos caixões. Então, essas foram às três abordagens que fiz dentro do circuito cultural. Com isso temos movimentado um público de aproximadamente 700 pessoas por mês, só exclusivamente para visitar o espaço.
Além dos países citados, no Chile também existe a visita a cemitérios?
Os guias turísticos desses países já estão condicionados a levar as pessoas aos túmulos de celebridades. Isso não acontece no Cemitério do Campo Santo. O turista é levado para conhecer a simbologia da arte. O que é que significa uma coluna quebrada? O que é que significa uma ampulheta? O problema é que existe ainda o preconceito. Sei que é um momento muito triste, mas graças a Deus nós estamos conseguindo quebrar isso.
Como tem reagido a clientela do hospital, profissionais e o público em geral com a grafitagem do muro?
Maravilhosamente muito bem. Para se ter uma noção, já recebi ligações de pessoas querendo que eles façam uma plotagem nas paredes de suas residências. Percebemos com isso, que realmente a proposta atendeu ao objetivo da Santa casa de mostrar o trabalho deles. Eles ganharam visibilidade. Eles estão numa vitrine que tem tido uma boa aceitação.
Sua opinião sobre o trabalho dos grafiteiros?
A partir de agora as pessoas vão observar o grafite de outra maneira, com outros olhos e espero que outras instituições abram as portas para que muros de outros hospitais ou de outras instituições, façam igual a Santa Casa, dando oportunidade e visibilidade ao trabalho desses artistas que não tem condições de fazer uma exposição, que não tem condições de participar de um catálogo, mas que tem um trabalho muito sério e belíssimo. Vou aproveitar a oportunidade e dar uma notícia de primeira mão a respeito do projeto que fiz e foi aprovado pelos superiores da Santa Casa. No próximo ano, vamos produzir uma exposição no Museu da Misericórdia com os grafiteiros. Eles vão receber telas no formato de 1,00 x 1,00 e reproduzirem o que está no muro do hospital. Ou seja, tirar do muro e mostrar numa exposição. Essa é uma maneira de divulgar o trabalho desses artistas. É uma maneira que a museologia está utilizando o recurso da exposição para cada vez mais fortalecer a linguagem do grafite à arte moderna.
Histórico da Santa Casa da Misericórdia
O nome de Nossa Senhora da Misericórdia era uma das antigas invocações da Virgem Maria, que foi utilizado entre 1240 e 1350 para nomear uma irmandade em Florença. Segundo alguns estudiosos, esse fato teria influenciado Portugal ao criar irmandade de mesmo nome. A bandeira de todas as Misericórdias, através de sua pintura, representava a igualdade com que a Mãe de Deus favorecia e recolhia a todos debaixo do seu manto.
A Santa Casa da Misericórdia teve origem em Portugal no final do século XV, instituída a 15 de agosto de 1498, sob a proteção da rainha Dona Leonor de Lencastre, viúva de Dom João II, rei de Portugal falecido em 1495. A instituição serviu de modelo para criação da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, a segunda do Brasil, devido à necessidade de internação de pacientes destituídos de recursos ou recém-chegados, sem família e sem moradia.
A origem da Santa Casa da Misericórdia da Bahia remonta a fundação da Cidade de Salvador, pelo primeiro governador-geral, Tomé de Souza, fidalgo e rico aventureiro da carreira das Índias. Desde então, a instituição vem desempenhando a sua função primordial, baseada no compromisso de Lisboa que estabelece a prática das 14 obras de Misericórdias, sendo sete Espirituais e sete Corporais.
Lindo isso!
Quero parabenizar essa iniciativa, demonstrando que a soma de grandes idéias pode ser uma ferramenta de transformação e multiplicação da riqueza de nossa arte, tão elogiada por turistas estrangeiros, mas pouco reconhecida pelos brasileiros. Jane Palma é uma profissional que merece total respeito de todos nós pelo maravilhoso trabalho desenvolvido na Santa Casa, em seus projetos e materialização de suas brilhantes idéias.Paranaguá e artistas, super parabéns por fazer acontecer essa exposição a céu aberto, permitindo acesso a todas as pessoas dessa cidade maravailhosa que é Salvador.
Obrigado Thus pelo comentário. Vou estar sempre antenado na busca de notícias sobre a arte urbana.
Embora distante de Salvador, minha terra natal, fico extremamente orgulhosa quando vejo um trabalho como esse, de preservação da nossa memória cultural e divulgação da nossa arte. Exemplo a ser seguido por todo o país.
Parabéns Jane Palma, profissioanal de competência unica;
Parabéns grafiteiros, por honrar com arte o espaço conquistado;
Parabéns Paranaguá, por abrir espaço para essa matéria.