O estadunidense Mark Pofohl, 43, mais conhecido na cena urbana de Salvador como Kuza, nasceu na cidade de Boston, é formado em Fotografia pela Faculdade Estadual de New Hampshire (EUA). Aos 19 anos, iniciou sua trajetória como grafiteiro fazendo murais nas paredes dos imóveis americanos: “(…) esse tipo de trabalho eu só fiz duas vezes, quando era mais novo”. Há mais de 10 anos, participando da cena local, o “Lobo Solitário”, como se autodenomina, é o autor intelectual dos diferentes bichinhos espalhados pelo Centro de Salvador. Em 2008, fez sua primeira intervenção em Salvador: um dinossauro no Beco das Quebranças, na Rua Carlos Gomes. Na entrevista, Kuza também falou de quem herdou o interesse pela arte, os motivos da sua vinda para Salvador, e da iniciativa de abrir a loja Mil Muros. (Direitos reservados. Denuncie abusos. Fotos: Markuza e JFParanaguá).
A Arte na Rua – -Qual a sua descendência?
Kuza – Minha mãe nasceu na Europa. É filha de alemão e sueca. Meu pai é da antiga geração nos Estados Unidos, mas descendente de alemão e inglês.
AAR – Você tem outros irmãos?
Kuza – Um irmão mais novo e três mais velhos.
AAR – Você veio dos Estados Unidos para qual cidade do Brasil?
Kuza – Diretamente pra Salvador.
AAR – Por que Salvador?
Kuza – Estava treinando capoeira angola em Nova York, com mestre João Grande, que é daqui de Salvador. Chega a um ponto na prática da capoeira que você quer conhecer a cidade do seu mestre. E, por causa disso, aluguei um apartamento para passar um mês em Salvador.
AAR – Aqui ficou?
Kuza – Fiquei. Depois, retornei aos Estados Unidos. Mas, após um ano estava de volta.
AAR – Há quanto tempo está em Salvador?
Kuza – 10 anos. A primeira vez foi em 2001.
AAR – Você estudou artes nos Estados Unidos e/ou herdou de alguém da família aptidão artística?
Zuza – Os dois. Meu pai era um artista plástico, que pintava de olho.
AAR – Técnica da observação. Ele era autodidata?
Kuza – Foi autodidata até os 16 anos. Depois, estudou na Europa, sendo inclusive minha maior influência artística. A partir daí, resolvi estudar artes plásticas na faculdade.
AAR – Em Boston?
Kuza – Não. No estado vizinho, chamado New Hampshire. Comecei com pintura e desenho e acabei fazendo fotografia, curso que me formei. Mas, logo depois, resolvi que não queria fazer uma carreira de fotografia. Então, retornei para o desenho.
AAR – Na época, qual era o seu estilo de pintura: abstrato, figurativo, surrealismo, natureza morta? Qual foi sua escolha?
Kuza – Quando estudei na faculdade, era um programa mais tradicional. Como era? Vida morta…
AAR – Natureza morta.
Kuza – Natureza morta, corpo humano. Mas foi na fotografia que aprendi a fazer trabalhos abstratos. E acabei fazendo o curso porque a professora era a mais interessada (risos). Mais fácil de trabalhar com as ideias.
AAR – Então você assimilou melhor o curso de fotografia?
Kuza – Com certeza.
AAR – E como surgiu o seu envolvimento com o grafite? Você fez intervenções nos Estados Unidos?
Kuza – Fiz algumas. Mas basicamente murais. Realmente eu pintava…
AAR – Eram murais coletivos?
Kuza – Não. Pintava sozinho.
AAR – Com que idade você fez sua primeira intervenção?
Kuza – Mais ou menos dezenove anos.
AAR – E quanto à proibição?
Kuza – Tem sim.
AAR – Você pintou durante a noite?
Kuza – Sim. Mas esse tipo de trabalho eu só fiz duas vezes, quando era mais novo. Às vezes, quando retorno, pinto alguma coisa na rua.
AAR – Escondido, clandestino?…
Kuza – Escondido.
AAR – Você veio para Salvador por conta do seu aprendizado na capoeira. E quando chegou aqui vocêr fez o quê?
Kuza – Dei sorte de encontrar uma namora. Hoje é minha esposa (risos).
AAR – Foi amor à primeira vista?
Kuza – Mais ou menos (risos).
AAR – Daí escolheu fincar raízes em Salvador?
Kuza – Sim. E tem um detalhe: quem vem pra aqui fazer capoeira fica meio obsecado. Principalmente quem pratica capoeira angola.
AAR – Já utilizou seus conhecimentos de capoeira em algum momento da sua vida?
Kuza – Não! Graças a Deus não! Tenho certeza que iria passar vergonha (risos). Não sou brigão…
AAR – Como você viu a realidade de Salvador, em relação à liberdade de expressão dos grafiteiros pintando na rua a qualquer hora do dia?
Kuza – Quando cheguei a Salvador, vi muito pouco esse tipo de trabalho. Tinha mais pichação. Até publiquei no meu antigo site fotos de pichações, porque não tinha grafites.
AAR – Em 2001, quando você chegou a Salvador, existiam muitas pichações na cidade. Os grafites eram produzidos pelos artistas nos bairros mais afastados do Centro…
Kuza – Inclusive visitei São Paulo, Rio e fiquei muito impressionado com o trabalho de lá. Você encontra grafite em toda a parte. Em qualquer lugar que passava tinha grafite. Eu adorei! Quando morei em Nova York, era a mesma coisa: encontrava grafites nos bairros, mas não via nenhum no centro. Isso foi antes dessa explosão da street art. Hoje você encontra em qualquer parte do mundo.
AAR – Nos anos 70, a cidade de Nova York ficou conhecida pelas mensagens de protesto dos negros gravadas nos trens de metrôs urbanos…
Kuza – Meu pai morou em Nova York nessa época e curtia esse tipo de manifestação com pinturas nos trens. Mas era uma polêmica. E continua sendo até hoje, porque a população não aceita e nem apoia esse tipo de transgressão e de rebeldia dos jovens.
AAR – Quais são os bairros de Nova York onde mais existem intervenções de grafites nas ruas?
Kuza – Um deles é o Bronx. Também são encontrados nos parques públicos. Quem tiver interesse de saber é só acessar o Google. Em Nova York tem uma fotógrafa chamada Lois Stavsky (http://www.loisinwonderland.blogspot.com.br), que faz um trabalho semelhante ao seu, registrando os grafites. Quem gosta de grafite e for à Nova York por agora não deve deixar de conhecer um ponto muito famoso denominado Five points (Cinco pontos), que fica no Bronx. Lá tem uma fábrica enorme que está prestes a ser demolida para construção de um condomínio. Nesse local os grafiteiros tem total liberdade de pintar o exterior do imóvel.
AAR – Mesmo percebendo que a cidade de Salvador estava toda pichada você sentiu o desejo de pichar?
Kuza – Não. Até porque nunca gostei de fazer pichação.
AAR – Quando surgiu o seu interesse de pintar nos muros, encostas e viadutos da cidade?
Kuza – Quando começaram a surgir na cidade as primeiras pinturas do Projeto Grafita Salvador.
AAR – Como você assinava suas intervenções: Markuza ou Kuza? E qual o significado de Kuza?
Kuza – Meus grafites são assinados como Kuza, que é uma abreviatura de Markuza. Quanto a Markuza, usei na época que eu era DJ de rádio, e escolhi esse nome porque tinha um som interessante e um pouco de japonês. No caso de Kuza, tem um detalhe: a turma daqui gosta de fazer muita gozação com esse nome (risos).
AAR – Você tem ideia em que ano e local de Salvador fez a primeira intervenção?
Kuza – Em 2008, no Beco das Quebranças (transversal da Rua Carlos Gomes com Avenida 7 de Setembro). O Beco fica em frente ao Colégio das Mercês.
AAR – E qual foi o bichinho?
Kuza – Um dinossauro.
AAR – Você pintou à noite?
Kuza – Não. Fiz durante o dia. Quando estive na Bomb Bahia encontrei um americano e perguntei pra ele: “E aí, como é?” Respondeu o seguinte: “Você pode ir pra rua e pintar durante o dia, sem problemas…”.
AAR – Era seu amigo?
Kuza – Não. Conheci naquele dia. No seu comentário, deu pra perceber que as produções existentes na rua não estavam sendo feitas às escondidas pelos grafiteiros. E continuou: “…Não se preocupe porque você vai encontrar muitos bombs. Uma coisa que você faz em cinco ou 10 minutos e sai correndo”. Então, falei pra ele: essas produções dos caras nas ruas principais levaram horas pra fazer. Essa não! É proibido! Não pode ser! Não tem jeito de fazer um trabalho assim caso você esteja com medo da policia…
AAR – Você estranhou essa liberdade?
Kuza – E muito! Eu achei incrível! Imediatamente queria participar quando vi as pinturas. E pensei comigo: Também quero fazer isso. O americano que encontrei na Bomb Bahia estava morando aqui em Salvador. Não me recordo o nome dele. Inclusive gostava de pintar lulas. Ele ainda me disse: “Você vai pra rua, não pinta no muro de ninguém; acha um viaduto, uma casa abandonada e pinta numa boa. Se alguém questionar, você tira onda de estrangeiro ignorante que não sabe de nada e diz: Oh! Sorry! blá, blá…” Até hoje nunca tive de dizer nada disso (risos).
AAR – Desde o seu primeiro trabalho você tem simpatia pelo desenho de animais. Continua mantendo a tradição até hoje?
Kuza – Gosto de pintar bichinhos, começou na minha juventude. Somente depois,, na faculdade, passei a desenhar mais, explorando temas tipo: monstros, bichinhos e máquinas. Gosto muito de ler ficção científica.
AAR – O artista gráfico e ativista estadunidense Keith Haring lhe influenciou de alguma forma?
Kuza – Não. Na verdade, depois que concluiu o curso na faculdade é que li a sua biografia e gostei muito da ideia e do jeito dele fazer arte. Principalmente quando ele chegava numa galeria com as telas em branco, pintava todas elas no chão, em seguida pendurava na parede. Achava uma coisa incrível! Porque pra mim, até essa época, pintura era uma coisa que você fazia devagar, demorava semanas e meses pra terminar uma tela. Mas, Haring não! Em duas horas ele terminava uma pintura. Tem muitos artistas que tem uma influência dele. Mas, acho que meu trabalho tem muito mais a ver com os Muppets do programa de televisão. Criação de Jim Henson (conhecido como manipulador de bonecos). Os meus desenhos são parecidos com os bonecos que tem em outros programas hoje em dia, com olhos grandes, todos coloridos…
AAR – Semelhantes aos Simpsons?
Kuza – Também.
AAR – Você sente dificuldades ou desconforto na hora de pinta, por ser canhoto?
Kuza – Às vezes, acho que falta o controle que os outros destros têm. Minha mão não tem o grau de controle que é necessário, mas não impede a fonte de minha criatividade, que é um jeito natural e diferente de pintar.
AAR – E a criação dos bichinhos? Você faz antes um esboço dos desenhos?
Kuza – Muitas vezes faço na hora. Às vezes, surge uma ideia e faço um rascunho rápido.
AAR – Você tem um book?
Kuza – Não trabalho com book. Uso mais o papel pra fazer apenas um traço, uma base da ideia que levo para o local da pintura.
AAR – E como você define as cores que serão aplicadas?
Kuza – Não tenho como definir. Por isso levo sprays de várias cores.
AAR – Um exemplo de sua imaginação fértil são as pinturas rápidas de bichinhos pintados nos blocos de concreto chamados “gelo baiano”, lixeiras…
Kuza – Às vezes, começo o desenho sem saber como vou completar.
AAR – Você já foi abordado alguma vez durante a pintura na rua? Qual o foi o seu argumento?
Kuza – Quando aconteceu pela primeira vez, não tinha nenhuma ideia do que poderia fazer ou dizer. Não sou muito bom de pensar ao ser pego de surpresa. Certo dia estava com o carro parado cheio de tinta, raspando uma extensão de um muro e de repente chegou um cara dizendo-me ser filho do dono do espaço e que era proibido pintar ali. Então disse: Está bom. Vou parar. Em seguida falou: “Vou ligar pra polícia”. Diante dessa ameaça, respondi: Vou parar, mas antes quero pintar tudo de branco. Depois percebi que tudo foi mentira. Por algum motivo o cara não gostava, talvez tivesse brigado com a namorada ou estava revoltado com alguma coisa e resolveu descarregar em mim a sua insatisfação.
AAR – Como você procedeu em outras ocasiões?
Kuza – Procurei ficar calmo e preparado. E caso alguém me perguntasse se tinha autorização responderia que sim. Foi o que aconteceu durante uma pintura de um muro próximo ao Quartel dos Aflitos, na Rua Carlos Gomes. Chegou um policial meio agitado e foi logo perguntando: “Você tem autorização?” Disse-lhe que sim. E continuou: “Você sabe que é proibido pintar nessa área”. Pra evitar problemas falei: Vou recolher o material e vou embora.
AAR – Foram esses os únicos fatos?
Kuza – Não. De outra feita fui parado por uma dupla de policiais enquanto riscava de caneta uma caixa de telefone no Largo Dois de Julho. Percebi que a policial feminina gostou, mas o outro não. E me abordou dizendo: “Isso aqui é um patrimônio público. Não é permitido pintar e acho melhor você parar”. Foi o que fiz. Agora o que mais mete medo e assusta são os encontros com pessoas embriagadas. Quando pintei um painel na Conceição da Praia dei de cara com alguns que me deixaram assustados. Eles são piores que os policiais.
AAR – Quais são as áreas que você mais gosta de pintar em Salvador?
Kuza – No Centro, por ser o bairro onde moro. Às vezes, andando pela rua, marco na mente os pontos, pra depois pintar. Eu não gosto de marcar um espaço com a tag pra voltar depois. Posso não voltar e impedir que outra pessoa pinte no local.
AAR – Como é que surgiu a iniciativa de abrir uma loja para vender sprays? Depois que o grafiteiro Sins fechou a Bomb Bahia ficou uma lacuna. Acho que ele foi o pioneiro desse ramo, ao montar uma loja com produtos importados e outros itens de qualidade, sendo o local inclusive um “point” da galera ligada na arte urbana.
Kuza – Antes da decisão de Sins de fechar a loja Bomb Bahia, nós já conversávamos a respeito de montar um site (loja virtual) pra ele comercializar sprays.
AAB – O que levou você a abrir a Mil Muros, para comercialização de sprays de qualidade, literaturas, publicações, camisetas e também um local de encontro?
Kuza – Quando ele comentou comigo que não queria mais, então falei: Sins, já que você desistiu da ideia, vou abrir a loja em seu lugar. Além de concordar, ainda me vendeu todo material em estoque. Isso foi o começo da loja virtual que funcionou antes na minha casa. Mas, logo depois de lançar o site, o pessoal passou a perguntar: “E aí, cadê a loja? Onde é que encontro esses produtos aqui em Salvador?”. Então, fiz um acordo com um vizinho proprietário de uma mercearia e comecei a vender os produtos no local. Como a procura foi muita e queria ter mais espaço para trabalhar outro ramo que é a internet, abrir uma loja física: a Mil Muros. E aqui nós estamos há seis meses, no Largo 2 de Julho, nº 27, sala 8, subsolo, ao lado da antiga Bomb Bahia.
AAR – A frequência de público é grande?
Kuza – Eu acho que sim. Agora tem concorrência. Na época Sins não tinha concorrente.
AAR – Por que você escolheu fazer aquele painel enorme na parede de um imóvel fechado na Conceição da Praia, no Comércio?
Kuza – Escolhi por ser um local de grande movimento de veículos, de pessoas e de grande visibilidade. E também estou interessado em pintar em lugares altos. Estou procurando paredes e muros que possa pintar no alto, a fim de não interferir no trabalho de outro grafiteiro. Tem muita gente pintando e colando cartazes de propaganda por cima dos nossos trabalhos. Entre nós pichadores e grafiteiros existe o respeito, uma ética.
AAR – Sua mulher tem alguma participação nos seus trabalhos?
Kuza – Somente preocupação porque saio sozinho (risos).
É AAR – Participa de alguma crew?
AAR – Sou sozinho. Markuza, o “Lobo solitário” (risos).
AAR – Tem quanto tempo que assumiu o apelido de “Lobo solitário”.
Kuza – Desde quando comecei a pintar sozinho.
AAR – Nas minhas andanças pela cidade registro pinturas suas sem parceiros. E com grafiteiros de Salvador…
Kuza – São poucas as pinturas de rua que participei com outros grafiteiros. Pintei com Frankie Souza (Juazeiro do Norte/CE), com um casal de São Paulo que estava em Salvador e com o chileno Matias e sua mulher Pinda.
AAR – Como é que você vê o grafite nas galerias, principalmente aqui em Salvador?
Kuza – Pra mim a arte em qualquer lugar é a mesma coisa. Sempre quis expor em galeria também. A vantagem de pintar na rua é que muito mais gente vai ver o seu trabalho. E se o grafiteiro só expõe na galeria pouca gente vê. Porém acho válido fazer as duas coisas.
Contatos: http://www.milmuros.com.br e www.markuza.com
Obrigado Paranaguá! É uma honra participar no seu projeto, e sem dúvida essa foi a melhor entrevista de minha carreira de artista! A gente se vê pelas ruas.
Abração,
Markuza
Kuza, o agradecimento é recíproco. Obrigado pelo elogio ao nosso trabalho.